Por Edylene Daniel Severiano
Acredito que tudo neste mundo tem uma história para contar (…). Tentamos viver nossas vidas de forma irrepreensível, mas, às vezes, somos esmagados pela ignorância do mundo.
(Tokue)
Não estivesse datado de 2015, o premiado filme nipo-franco-alemão, de roteiro de Tetsuya Akikawa e Naomi Kawase, trazido à vida no ecrã pelo habilidoso e sutil olhar de Kawase, An (Sabor da Vida), poderia ser datado de um futuro próximo, inspirado nas vicissitudes de nossos dias – agora mais longos pela incerteza que nos atravessa – ou, melhor dizendo, na ausência que nos trouxe ao aqui-agora: a inapetência da escuta que nos atropela por todos os lados numa avalanche de ignorância. Nossa ignorância, nossa incapacidade de ouvir o mundo.
Baseado no romance homônimo de Durian Sukegawa, An oferece uma ode às relações familiares e à natureza, numa trama centrada nas histórias de três personagens: uma mulher idosa, um homem de meia idade e uma estudante. Um filme de cores e fotografias suaves, em que o signo que se afirma preponderante é o som. Assim se inicia a película, com os sons estridentes das coisas no mundo – trem, vozes de transeuntes, arrastar de pés – juntos ao profundo quase silêncio de duas das personagens principais: a tímida Wakana e o introspectivo Sentarô.
Interpretada por Kyara Uchida, a adolescente Wakana se mostra deslocada no mundo, presa a uma relação distante com sua mãe, que não a estimula a continuar os estudos, e isolada dos colegas de escola. Seu centro de interação é a pequena loja de dorayaki onde Sentarô trabalha sozinho, para onde ela vai, faz um lanche e recebe dele as sobras de massa que “não deram certo”. O silêncio da jovem faz-se gritante pelo contraste com outras jovens na loja, efusivas, contentes, brincando entre si e até com Sentarô, enquanto Wakana apenas se limita a saudações e agradecimentos. Mesmo em casa, sua mãe e seu canário, Marvy, emitem mais sons do que a jovem. É sabido que a fala é uma expressão da dobra com a ausculta, elaborada por meio do silêncio, e é neste que Wakana está contida, sem conseguir fazer-se ouvir.
Como um contínuo dessa inércia está Sentarô, interpretado por Masatoshi Nagase, um homem na casa dos 40 anos que se dedica a uma pequena loja de dorayaki, sem ao menos gostar de doces. Indiferente aos clientes, em sua maioria jovens estudantes descontraídas, passa seus dias entre a pequena loja, seus cigarros e seu apartamento, inerte a todos, todos os sons ao redor, silente como Wakana. Uma das cenas iniciais do filme traz Sentarô arrastando os pés até o terraço de seu prédio, indo fumar antes de mais um dia de trabalho. O som de seu arrastar de pés revela o mais profundo que há no seu ser: o vazio. Como pacientes, ambos, Sentarô e Wakana, parecem esperar a aparição de Tokue para propagar e dar sentido às suas vidas.
Interpretada pela talentosa Kirin Kiki, logo nas primeiras cenas, Tokue, uma pequena e frágil senhora que conversa com as árvores, o Sol e a Lua, está em mais um de seus passeios. Ela aparece na loja de dorayaki e indaga Sentarô quanto à cerejeira plantada em frente à loja. Ele se limita a responder que não era dali. A frágil senhora, então, mostra-se interessada na oferta de trabalho que constava no letreiro em frente à loja e, após trocar algumas palavras com o doceiro, este lhe pergunta sua idade e se surpreende, já que o trabalho seria pesado para uma senhora de 76 anos. Tokue insiste e pede para o futuro chefe pensar. Ele, não muito receptivo, oferece-lhe um dorayaki. Tokue se despede, agradece e parte, não sem antes cumprimentar a cerejeira. Wakana, que observava a cena, pergunta, caso ele não contratasse Tokue, se ela poderia trabalhar como sua ajudante. Sentarô menciona a escola e a menina afirma que a abandonará.
Essa cena inusitada poderia ser mais uma, mas é o mote para a narrativa de Kawase se desenvolver. Passados alguns dias, Tokue retorna à loja reiterando seu pedido de trabalho. Diante da negativa de Sentarô, comenta que provou o dorayaki e que a massa até estava boa, mas não a pasta de feijão doce (an), deixando para o doceiro, assim, a an que ela mesma preparara. Sentarô, no fim do expediente, olha para o pote de doce e o joga no lixo, mas em um ímpeto o recolhe e resolve experimentá-lo. Nesse momento seu mundo se abre. A an, pasta de feijão azuki adocicada, que dá nome ao filme, era saborosa. Dias depois, quando Tokue retorna, ele a contrata e tem início uma jornada pelo sabor do An, pelo sabor da vida. Tokue ensina as minúcias do preparo, que começa antes do raiar do “Senhor Sol” e exige horas de paciente escuta e apreciação. Em pouco tempo, o dorayaki feito por eles fica famoso, e cada vez mais clientes vão à loja.
O tempo passa, as estações passam e tudo parece seguir bem, até que a proprietária aparece e exige que o doceiro demita sua ajudante. Tokue tinha as mãos defeituosas, sequela da lepra que a acometera ainda na adolescência. Apesar da insistência fraca de Sentarô, sua chefe afirma que, se as pessoas souberem, deixarão de frequentar a loja. Emerge, assim, uma face da sociedade japonesa a que o público mais geral está pouco afeito: a face da exclusão e do preconceito. O doceiro, sem coragem de demitir Tokue, que afirmava já estar curada – e estava – vê com o passar do tempo o estabelecimento se esvaziar. Não importava que Tokue estivesse curada, o medo e o estigma falaram mais alto. E, um dia, a frágil e determinada senhorinha não mais retorna.
No decorrer dos dias da ausência da doce Tokue, Sentarô, inconformado com a situação, entrega-se à desolação. Até que um dia sua ajudante quebra o silêncio ao lhe escrever uma carta expressando o quanto era grata por ter estado ao lado dele e por ter novamente podido preparar a an, afinal, esse tinha sido seu trabalho por 50 anos. Suas palavras, doces e suaves, como a pasta que fazia, tocam o coração de Sentarô: “Acredito que tudo neste mundo tem uma história para contar (…)”. Assim, Tokue conta como ouvia os feijões, suas histórias desde os campos até a panela, acolhia-os com sua suavidade e os adoçava com ternura e paciência, respeitando seu tempo de preparo.
Ao lado de Wakana, Sentarô parte em busca de Tokue. O local é uma antiga área de isolamento de pessoas com hanseníase, e a chegada até lá tem um quê de viagem bucólica. Há uma pequena floresta e depois dela uma Tokue mais frágil e debilitada, que conta como chegara até ali, ainda muito jovem, e nunca mais vira sua mãe, tampouco pôde ter seu filho. Os laços de cuidado e afeto, até então discretos, evidenciam-se: uma mãe sem seu filho, um filho sem sua mãe e uma criança sem cuidados, assim estavam Tokue, Sentarô e Wakana antes de ouvirem juntos os feijões azuki. Sentarô, num gesto confessional, escreve uma carta a Tokue revelando por que emudecera diante do mundo: ao apartar uma briga, acabou ferindo alguém e, por isso, ficara preso por três anos. Nesse ínterim, sua mãe veio a falecer e ele não pode mais ouvir o que ela tinha para contar, suas histórias: emudecera diante do silêncio.
O doceiro, motivado pelas palavras de sua ajudante, retoma o trabalho, dedicando-se a fazer a an. Com a ajuda de Wakana, vê seu trabalho com entusiasmo, mas mais um empurrão os silencia: a proprietária tem planos de modernização da loja e impõe um novo ajudante, que virá a ser chefe de Sentarô. Desnorteados, Sêntaro e Wakana partem de novo em busca de Tokue, mas são informados por Yoshiko, sua amiga do asilo, de que ela falecera. Ela, porém, lega a Sentarô seus instrumentos de cozinha e a Wakana, um pedido de desculpas por não ter podido cuidar de Marvy, afinal, não pudera mantê-lo preso. Yoshiko conta-lhes, ainda, que, como as pessoas do asilo não podem ser sepultadas, é plantada uma árvore quando elas falecem. Então, leva Sentarô e Wakana à árvore de Tokue, uma cerejeira, em meio a uma pequena floresta, capaz de falar a quem quiser ouvir.
Kawase, assim, oferece ao espectador uma reflexão sobre as relações familiares e a natureza, e como essas se entrelaçam pelas falas e auscultas, lembrando que todos têm algo a oferecer, não importando a idade. Não há seres descartáveis, o que deve ser isolado é o medo do diferente. Mais do que os feijões, Tokue se dedicava a ouvir o mundo, o som, a voz, as narrativas que as pequenas coisas têm para contar, as minúcias daquilo que compõe o cotidiano. Impedida de ouvir seus entes queridos, restou-lhe aprender a ouvir a natureza, os sentidos e sentimentos que esta expressa, inclusive os alimentos. A natureza, então, é o que passa a atá-la ao mundo. Kawase dá forma a uma pequena família, cujos membros conseguem se conectar a partir da escuta da natureza: Tokue, que aprendera a ouvir o mundo como mãe e avó, dedica-se a ensinar essa escuta motivadora da presença, do estar, da agência no mundo, da fala. Sentarô encontra a voz perdida de uma mãe a acolher seu filho e a prepará-lo para o mundo. E Wakana, que não conseguia ser ouvida por sua mãe, recebe de Tokue e Sentarô o incentivo para encarar a vida. Desse modo, ela lega aos dois o aprendizado de ouvirem as vozes do mundo, da natureza, para que, assim, ecoem e falem. Numa prática das ideias para adiar o fim do mundo, Tokue adia o fim de dois mundos – os de Sentarô e Wakana. “Não há inverno que não seja seguido da primavera”, diz um provérbio japonês. Como tal, Sentarô e Wakana veem florescer suas vidas, ela seguindo seu sonho de estudar, e ele finalmente deixando a doçura do dorayaki guiar sua vida.
Isso faz do filme de Kawase um diálogo contemporâneo, pois, mais do que nunca, mas tanto quanto antes, todas as formas de humanidades são convocadas a ouvir o que as coisas do mundo têm a dizer, como afirma Tokue: “Viemos a este mundo para vê-lo e ouvi-lo” (tradução livre da autora).
Ficha técnica:
País: Japão; França; Alemanha | Direção: Naomi Kawase | Roteiro: Durian Sukegawa (livro), Tetsuya Akikawa, Naomi Kawase | Elenco: Kirin Kiki, Masatoshi Nagase, Kyara Uchida | Duração: 113 min | Ano: 2015
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