Por Krystal Urbano (Resenha completa em Revista Intertelas)
“Em uma época em que os seres humanos não haviam chegado ao topo da pirâmide natural e também não sonhavam, eles desceram das árvores, aprenderam a usar o fogo e a produzir armas afiadas, inventaram a roda e construíram trilhas e, por fim, aprenderam a plantar e se instalaram em um lugar. No entanto, não tinham uma nação, nem um rei… A terra gloriosa das antigas mães, Arth”.
Arthdal Chronicles, 2019, TvN-Netflix
Ambientada no início do período da civilização, durante a Idade do Bronze que remonta a mais de 2.000 anos antes de Cristo, Crônicas de Arthdal (Arthdal Chronicles) é uma série de TV sul-coreana produzida pelo Studio Dragon e exibida pela emissora de TV a cabo Total Variety Network (TvN) em 2019, com distribuição internacional via site de streaming da Netflix. A série, que é um k-drama épico de fantasia, é assinada pelos roteiristas Kim Young Hyun e Park Sang Yeon, nomes importantes na indústria dos dramas históricos, sendo também vagamente baseada na história de Dangun, o lendário rei que se proclamou o fundador do primeiro reino coreano de Gojoseon (2333 aC-108 aC).
Cabe ressaltar que a inspiração para o roteiro da série, de acordo com os próprios roteiristas, também veio da leitura de livros de antropologia como “Sapiens: Uma breve história da humanidade”, “Armas, germes e aço”, e também da música “Imagine”, de John Lennon. Bastante sólida e original no quesito de sua construção de universo e personagens, Crônicas de Arthdal em sua primeira temporada composta por 18 episódios que são divididos em três arcos centrais, presenteia-nos com uma narrativa que chama atenção pela sua complexidade e cenários exuberantes (como as florestas de Brunei, utilizadas como locação) através de uma história fictícia baseada na ascensão das raças, a humana (Saram) e a de linhagem mais bestial (Neanthal).
De fato, os conflitos e relações entre as diferentes espécies e o suposto perigo do cruzamento entre elas – gerando os híbridos e temidos Igutus – está no cerne do referido k-drama, que se passa em um continente mítico chamado Arth, liderado por um líder de uma das diferentes tribos que formam a chamada União Arthdal. Basicamente, o enredo da série convida-nos a todo momento a aceitação da pluridiversidade, enquanto promove uma crítica ao exarcebamento da ambição e ideais de evolução da sociedade, quando descreve a batalha pelo poder dos chefes concorrentes pelo trono da primeira nação fundada no continente.
A lenda em torno da fundação de Arthdal conta que Aramun Haesulla, foi um saram enviado pela grande mãe espiritual, a Asa Sin, há uns duzentos anos atrás para unir as diferentes tribos vivendo em Arth em uma civilização. A lenda ainda conta que a reencarnação de Aramun Haesulla retornaria a Arth centenas de anos depois montado no Kanmoreu (o cavalo mais rápido, descendente direto da longa linhagem de primogênitos, o primeiro cavalo que já existiu, com memórias de correr na natureza gravadas no cérebro e, por isso, nenhum outro cavalo é capaz de ultrapassá-lo), seguido de um exército, tendo o machado do vento em uma mão e uma flor de lonicera na outra.
De fato, a União Arthdal não só se desenvolveu a partir de lendas e contos amplamentes difundidos entre os integrantes das diferentes tribos a respeito de seu fundador, como também foi gestada por seus líderes posteriores, visando a livre expansão territorial, em detrimento aos modos de vida primitivos dos demais povos – os chamados povos livres. Dentre essas tribos que disputam o poder de liderar a União, ganham destaque na narrativa a tribo Saenyeok, a tribo Hae e a tribo da Montanha Branca. Já como exemplo de tribos consideradas primitivas, ganha destaque elevado na história, a tribo Wahan, conforme veremos em seguida.
A construção do universo ficcional de Crônicas de Arthdal pode ser bem melhor compreendido, quando temos em vista os três tipos de raças que dão corpo e características aos personagens principais da trama. A primeira delas consiste nos Neanthals, seres que coexistem em harmonia com a natureza, não se prendem por laços, nem formam cidades. Uma das particularidades mais visíveis na raça dos Neathals consiste na força, muito superior a dos Sarams, além de possuirem o sangue azul e enxergarem perfeitamente no escuro.
Já os Sarams, seres que representam a raça humana, possuem a astúcia e inteligência para desenvolverem armas e equipamentos, bem como estratégias ancoradas na ambição e desejo de conquista e subjulgação da outros povos. Porém, dispõe de pouca sensibilidade para lidarem com a natureza e a diferença. De fato, a primeira temporada da série ilustra de maneira bastante contundente como durante a Grande Guerra, devido a uma estratégia militar dos Sarams, mais especificamente do jovem carismático Tagon (Jang Dong Gun) da tribo Saenyeok, filho do então líder da União Arthdal, Sanung, eles obtiveram vitória quase absoluta sobre os Neanthals.
Contudo, uma vez que os líderes da União Arthdal não conseguiram exterminar toda a raça Neanthal, houve uma contribuição para acontecimentos não imaginados de antemão. Sobretudo, o nascimento de dois bebês gêmeos concebidos por Asa Hon (uma descendente da família Asa, da Tribo da Montanha Branca) que ingenuamente serviu como bode expiatório da União Arthdal, levando a morte aos Neanthals, com Ragaz (um Neanthal, um dos mais fortes e guerreiros), vai ser o ponto de partida para o desenrolar da história dos irmãos Igutus (mestiços de sangue roxo) de nome EunSeom e Saya (Song Joong Ki), respectivamente.
EunSeom trilhou com a mãe, Asa Hon, para a longínqua terra de Iarc, uma terra distante, simples e pacífica que desconhecia as civilizações vizinhas, nem como montar em animais, cultivar a terra ou forjar armas, vivendo apenas da natureza e daquilo que ela naturalmente oferece. O fato é que Asa Hon sonhou que as crianças que ela gerou iriam trazer calamidade para o mundo, sendo orientada no sonho a não seguir o homem que cantarola. Ao descobrir que Ragaz foi assassinado e ver seu outro bebê, que estava com o pai no meio da mata, sendo levado por um homem cantarolando, Tagon, filho do líder da União, resolve partir para Iarc com o outro filho numa escalada no Grande Penhasco que dura dez anos, por acreditar que havia sido almadiçoada por Aramun Heasulla.
Contrariando todas as expectativas, Tagon, o jovem conquistador, cria o outro gêmeo de Asa Hon e Ragaz como seu filho as escondidas, tendo ajuda e suporte da sua amante e amada Taelha (Kim Ok Vin), filha do ambicioso líder da tribo Hae. Posteriormente, Saya irá tornar-se um grande aliado de Tagon, enquanto busca um sentido para a própria existência. Uma vez que viveu confinado ao longo de 20 anos, Saya procura seu lugar no mundo, ao ter conhecimento que é diferente dos demais Sarams, por possuir sangue roxo e estar confinado por ordem do suposto “pai”, Tagon. Naturalmente, Saya parece desconfiar de suas origens, enquanto EunSeom e Tanya cada vez mais aproximam-se dele ao longo da narrativa.
Com efeito, o ponto alto da história concede destaque a uma antiga profecia de Arthdal, que preconiza que aquele (ou aqueles) que destruiria(m) Arthdal, nasceria(m) sob a passagem do cometa Azul. Tal dia não só marca o nascimento dos gêmeos de Asa Hon e Ragaz, os igutus EunSeom e Saya, mas também de Tanya, herdeira da posição de matriarca e xamã da tribo Wahan, descendente direta da Loba Branca que fundou a tribo Wahan. O fato é que Tanya, EunSeom e o irmão gêmeo dele, Saya, são as crianças da grande profecia que representam os objetos celestiais que apareceram juntos há duas décadas no mundo.
A espada para matar a todos (EunSeom), o sino para ecoar pelo mundo (Tanya) e o espelho para iluminar o mundo (Saya). Essas três coisas, ao se juntarem, conforme diz a profecia, acabarão com o mundo e, o homem que matou o próprio pai lutará contra os objetos celestiais e impedirá o fim do mundo. Tal papel é concedido a Tagon, atual líder da União Arthdal, depois de assassinar seu pai em embate direto, na presença de EunSeom.
Por fim, parece-me que Crônicas de Arthdal estipula em sua primeira temporada os principais personagens e arcos narrativos que irão movimentar o drama até seu fim, mesmo com a incerteza de uma segunda temporada. Os três arcos mencionados, isto é, as três partes da primeira temporada disponibilizadas na Netflix, revezam o papel central dentro dos episódios dessa temporada. Tomada como um todo, a estrutura de Crônicas de Arthdal pode ser exaltada por sua complexidade, uma vez que a estrutura da produção revela uma sobreposição de três grandes arcos que, ao serem entrelaçados, exigem mais esforço por parte do roteiro e do espectador.
Desse modo, o drama sul-coreano consegue elaborar uma proposta muito atraente do ponto de vista da serialização, visto que brinca com as fronteiras dos arcos desenvolvidos dentro da trama. Assim, nota-se que desde o princípio a série trabalha com uma economia de informações, apresentando no decorrer dos episódios como os personagens lidam com elas, à medida que vão revelando-se.
Ficha Técnica:
Título: Crônicas de Arthdal Título em coreano: 아스달 연대기 (Aseudal Yeondaegi) País: Coreia do Sul Direção: Kim Won Seok Roteiro: Kim Young Hyun e Park Sang Yeon Elenco: Jang Dong Gun; Song Joong Ki; Kim Ji Won; Kim Ok Vin Ano: 2019 Episódios: 18
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