Por Edylene Severiano
Longa live-action de 2011, Usagi Drop (うさぎドロップ) oferece uma narrativa sobre as vicissitudes da vida num universo em que existem crianças. É baseado no mangá homônimo de 10 volumes, escrito por Yumi Unita e publicado mensalmente pela editora Shodensha, de 2005 a 2011 – mais tarde, transformado em anime.
Dirigido por SABU (Hiroyuki Tanaka) e com roteiro escrito em coautoria pelo roteirista Tamio Hayashi, o filme poderia ser descrito por esta sentença, que, de tão clichê, chega a ser irritante: a vida é feita de escolhas. No entanto, o diretor a reinventa de maneira tão simples e suave quanto profunda, de modo a provocar um turbilhão de ressignificações, possibilitando uma percepção mais sensível acerca da temática. Assim se desenvolve Usagi Drop, um filme sobre as dificuldades da vida diária, que traz o peso das escolhas e a descoberta da possibilidade da vida a partir da realidade da paternidade.
O filme conta a história de Daikichi (Ken’ichi Matsuyama), um trabalhador de escritório, de 30 anos e solteiro, que, ao chegar ao velório de seu avô, depara-se com uma garotinha, Rin (Mana Ashida), a quem se afeiçoa à primeira vista. Ao conversar com seus familiares, Daikichi descobre que a menina é filha ilegítima de seu avô. A interação entre eles se dá no momento de encerramento da cerimônia, quando Rin confirma com Daikichi que o vovô não acordará mais. Sensibilizado com a menina e com a ideia de que sua família pretende enviá-la para um orfanato, Daikichi, então, vê sua vida mudar ao decidir tomar conta dela, contrariando o desejo de todos.
O background de filmes yakuza de SABU parece querer evidenciar-se quando ele introduz uma pitada de humor, muito caricatural aos devaneios de Daikichi com uma modelo famosa. O drama segue, assim, um tom leve, com uma sutileza mantida não só pela paleta de cores, como também pela trilha sonora delicada (com músicas de Takashi Mori e Shoko Suzuki).
Na reunião após o funeral de seu avô, Daikichi é confrontado por sentimentos que, até aquele momento, não poderia imaginar que seus familiares carregavam. Além de terem vergonha de Rin, pela idade do avô de Daikichi (mais de setenta anos), apontavam-na como um fardo para a vida de todos. Nem mesmo a mãe de Daikichi ou sua irmã dispuseram-se a ficar com ela. Todos se mostravam incapazes de pensar em tomar a criança para si, não apresentando afeto para com um membro da família ou respeito pela memória do avô. Inclusive, a irmã de Daikichi, uma professora primária, esboçava aversão à criança, rejeitando-a.
Na manhã seguinte à sua decisão, Daikichi já sente o primeiro impacto: crianças precisam se alimentar, se vestir, estudar, ter uma rotina. E, com o passar dos dias, manter o trabalho no escritório e Rin na creche se tornam incompatíveis. Daikichi segue fazendo ajustes, troca Rin de creche, acorda mais cedo, passa a usar tênis para poder correr melhor durante o trajeto casa-creche-trabalho, mas a dificuldade e cansaço persistem. As palavras de sua mãe quanto ao sacrifício necessário quando se escolhe ter um filho continuam ecoando nele, fazendo-o questionar-se sobre sua decisão.
Entretanto, certo de sua escolha, Daikichi opta por um rebaixamento de cargo, saindo do escritório de empresa e passando para o chão de fábrica. É aí, pois, que um universo novo é ofertado para Daikichi: o chão de fábrica é o lugar dos pais e mães que persistem em manter a vida profissional. Assim, SABU aprofunda-se no universo pais e filhos versus sociedade, revelando as dificuldades de adaptação dos pais em um mundo regrado para – e por – aqueles que não têm filhos; a isso, soma-se o fato de Daikichi ser um pai solo.
A trama ganha mais emoção quando Yukari Nitani (Karina), a modelo por quem Daikichi delira, sai de seus sonhos e entra em cena. Ela é mãe de Kōki (Ruiki Sato), de quem Rin é amiga. As duas crianças dividem não apenas a ausência dos pais, mas também a consciência da ausência pela morte. A relação entre os pais, então, vai sendo tecida pela dos filhos: Yukari auxilia Daikichi quando Rin fica doente, e isso os aproxima, de modo que os momentos a quatro, no retorno para casa, tornam-se rotina.Enquanto tenta equilibrar suas vidas, entendendo as necessidades e sentimentos de Rin, Daikichi busca pela mãe da menina e é confrontado por uma realidade que ele não cogitava: se ele, que não tinha nenhuma responsabilidade direta com Rin, para além dos laços sanguíneos, decidiu abrir mão de sua vida para ficar com ela, como a própria mãe não estava disposta a fazê-lo? Masako Yoshii, essa é a única informação sobre a mãe de Rin. Daikichi, então, resolve procurá-la e, após contatá-la por e-mail, marca um encontro. Masako se apresenta como uma mangacá e afirma que, pensando em sua carreira, decidiu não ver Rin como sua filha e procurou não se afeiçoar à menina (o que justifica Rin ter dito a Daikichi que conhecia Masako, mas não gostava dela, já que Masako parecia não gostar dela também). Masako, por fim, pede para que Daikichi adote Rin, dando-lhe seu sobrenome para que ela não tenha problemas na escola quando ficar mais velha.
O pai de primeira viagem, aos poucos, compreende as palavras de sua mãe e segue com Rin, tentando (re)aproximar-se da família e de Yukari. No entanto, é a fuga das crianças da escola que sela o companheirismo entre o quase casal: ambos recebem uma ligação da escola, em seus respectivos trabalhos, a respeito do desaparecimento de Rin e Kōki. Família e amigos partem à procura dos dois, mas sem sucesso. Daikichi e Yukari seguem para casa na esperança de que as crianças tenham ido para lá, mas, ao encontrarem a casa vazia, esmorecem diante do desespero.
Nesse ínterim, as crianças atingem seu objetivo: chegar ao túmulo do pai de Kōki. Os dois choram e se despedem de seus pais. Dor, tristeza, saudade, mas alívio. Todas essas emoções são lançadas por duas crianças de 6 anos. Ambas sentem a dor da compreensão de que um ente querido não vai mais voltar. Então, as palavras do colega de chão de fábrica de Daikichi assumem o lugar central na narrativa: “Crianças são surpreendentemente sofisticadas por dentro. Elas só não têm palavras para expressar tudo que têm no coração”.
Rin e Kōki retornam sãos e salvos. Alguns problemas são superados, outros surgem, mas Daikichi segue firme com o propósito de ter Rin em sua vida. O mundo de Daikichi parece ser dotado de vida apenas através de Rin. A própria relação de Daikichi com os pais e a irmã é avivada pela presença da menina. Usagi Drop pode, assim, ser visto como um filme que busca quebrar a esterilidade de um mundo que relega as crianças ao “punir” seus pais por elas existirem. As crianças não são uma imposição, mas sim um propósito para aqueles que as desejam em suas vidas.
Ficha técnica:
País: Japão | Direção: SABU | Roteiro: SABU e Tamio Hayashi | Elenco: Ken’ichi Matsuyama; Karina; Mana Ashida | Duração: 114 min. | Ano: 2011
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