Por Hugo Katsuo
[Contém Spoiler]
Em seu belíssimo trabalho intitulado Camões, Inês Dias, Esfinge: o homem como insuficiente resposta ao desejo da poesia, apresentado no colóquio Um dia de Camões 5, Nícolas Tadashi escreveu: “A poesia não é para os fracos. E os poemas talvez ensinem a morrer.”. Da mesma forma, acredito que talvez exista um cinema que nos ensine que tudo é instante e que a vida, de certa forma, é marcada por suas impossibilidades — impossibilidade, inclusive, da própria realização amorosa. É nessa direção que o filme Life: Love on the Line (Director’s Cut) (2020), dirigido por Ninomiya Takashi, pode nos levar, ainda que ele não radicalize essas mortes (simbólicas ou não) no seu percurso, e que nele os fins não precisem ser, de fato, definitivos. Ao narrar a relação romântica entre Akira (Shirasu Jin) e Yuki (Raiku) desde os seus 17 anos até o fim de suas vidas — relação que se inicia em um encontro marcado pelo acaso (ou não), passando pela excitação da juventude e as turbulências da vida adulta —, o filme abre espaço para as mortes, mas, também, (e não menos importante) para os regressos.
Akira é um jovem rapaz crescido em um contexto familiar que o pressiona a seguir uma vida considerada normal e bem-sucedida, na qual deve terminar a escola, ingressar na universidade, arranjar um bom emprego e, sobretudo, construir uma família. Ao mesmo tempo em que é considerado o filho exemplar, ele é obrigado a assistir às brigas entre sua mãe e sua irmã mais velha (Doi Shiori), devido ao fato de que esta última não correspondeu às expectativas maternas e decidiu viver da maneira que entendeu como correta: intensamente. Em meio a esse caos, Akira tem sua imaginação como um refúgio e, ao voltar da escola, sempre caminha sobre uma mesma linha, fantasiando que, caso pise fora dela, irá correr algum perigo. Um dia, retornando à casa, conhece Yuki, um menino sonhador que, coincidentemente, nutre o mesmo hábito de caminhar sobre aquela linha. Esse encontro repentino passa a se tornar cotidiano e os dois começam a desenvolver uma relação única – e confusa a Akira, que, em um ato impulsivo, rouba um beijo de Yuki.
A partir desse momento, os dois iniciam um namoro duradouro que, na vida adulta, começa a se desgastar, culminando em um término no qual Akira abandona Yuki para seguir os desejos da mãe de construir uma família dentro dos moldes tradicionais, casando-se com uma mulher (Kojima Fujiko) que, desde a época do colégio, era apaixonada por ele. Vivendo uma mentira, Akira vê seu casamento terminando em um divórcio. Encontra-se sozinho e arrependido por ter escolhido esse caminho, até que confronta sua família, assumindo-se enquanto gay para defender sua irmã que escolheu se casar com um estrangeiro contra a vontade da mãe, e decide procurar por Yuki. Quando fracassa em sua busca, Akira viaja para o Alaska — lugar que planejava visitar com seu ex-namorado — e lá o reencontra. O casal conversa e se reconcilia, conseguindo até a aprovação da família, de modo que vivem juntos até o final de suas vidas.
Por certo, a pressão de uma sociedade heteronormativa foi fator fundamental para o término do casal. No entanto, o grande “vilão” que permeia o desgaste do relacionamento entre os protagonistas não é a vontade de Akira de construir um futuro nos moldes heterossexuais para agradar a mãe; é, antes disso, o trabalho e o ritmo capitalista da vida adulta. Em uma sequência do filme, Yuki desabafa sobre sua falta de perspectiva de futuro em relação a uma carreira profissional, e Akira responde que sua meta é se tornar um adulto trabalhador porque, dessa forma, os dois poderão viver juntos para sempre. Ironicamente, logo em seguida, é com a dinâmica de trabalho da vida adulta que o namoro começa a sofrer abalos: Yuki se revela infeliz com a carreira que escolheu, enquanto Akira se mostra cada vez mais cansado com o ritmo de seu trabalho. As cenas amorosas do início do filme vão se tornando cada vez mais escassas e acabam por perder espaço para uma rotina de trabalho na qual não há tempo para o amor.
Em Life: Love on the Line, Akira e Yuki encontram-se de forma inesperada e, mesmo após se separarem, há um reencontro e um final feliz — mas, se houve uma ruptura com a impossibilidade de realização amorosa, houve também uma tentativa de fugir da própria morte. No poema Troubador, Inês Dias escreveu:
“O único dia em que lá regressei sem ti/ foi como saber outra vez que ia morrer. (…) Era apenas questão de evitar o jardim/ do mesmo modo que pago para fugir/ à morte, escolhendo trajectos que me façam doer/ todos os músculos, excepto o do coração”.
Quando Yuki, em uma das últimas sequências, revela ter tentado esquecer Akira de todas as formas possíveis e que viajou para o Alaska sozinho, ainda preso ao último plano que havia idealizado antes do rompimento, ele opta por um trajeto específico que o livra da aceitação da morte, fazendo “doer todos os músculos, exceto o do coração”. Mesmo trilhando percursos distintos, os dois se reencontram no regresso e aceitam, de uma maneira ou de outra, a morte — para que algo novo possa nascer.
Recupero, novamente, Inês Dias, agora em seu poema Adamastor:
“Regressámos à praia,/ esgotada essa série de acidentes/ em que o menor foi o amor,/ ao contrário do que se previa. (…)// E escrevemos como vivemos,/ na espuma ou nos vidros embaciados/ da cidade, com a teimosa certeza de que/ nada ficará — nós não ficaremos”.
E, ainda que o filme não radicalize as mortes, resta-nos aprender com os poemas — e com o cinema — a morrer.
Ficha Técnica:
País: Japão | Direção: Ninomiya Takashi | Roteiristas: Tokokura Miya (autora do mangá) | Elenco: Shirasu Jin, Raiku, Kojima Fujiko, Doi Shiori | Duração: 113 min | Ano: 2020
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