Por Ana Beatriz Medella
O cinema, quando entendido como mais uma forma de produção artística do homem, pode trazer o gosto de ser um luxo, uma forma de alívio para as tensões do “mundo real”, um espaço onde aquele que assiste não precisaria pensar muito para entender do que se trata o filme, como se este não carregasse mensagem para além da primeira camada. Toda via toda produção feita pelo homem carrega um pouco de si, seja conscientemente ou inconscientemente. Assim como outras formas de artes, o cinema não existe em um espaço neutro e nem é passível de ser neutro.
Tal característica fica claro na filmografia de Hayao Miyazaki dá maior ênfase em seus filmes para o momento histórico da Segunda Guerra Mundial, sendo esse o período de seu nascimento. É inegável dizer que o contexto de seu nascimento não tenha impactado sua percepção de mundo e sua produção. A bomba jogada em Hiroshima foi lançada quatro anos após o nascimento de Hayao Miyazaki e dali em diante marcou não somente a sua produção cinematográfica como todo a área de audiovisual e a própria mentalidade japonesa. Do ácido e alucinógeno anime de 2004, “Paranoid Agent” de Satoshi Kon os emotivos tons de “O Túmulo de Vagalumes” (1989) de Isao Takahata, vemos uma profunda marca que se manifesta de diversas formas na arte. Compondo uma enorme lista encontramos também Godzilla (1954) e Ishirõ Honda e o filme “Akira” (1988) de Katsuhiro Otomo.
Trataremos, então, desta mentalidade que age sob a produção audiovisual enquanto passearemos por indicações da produção do diretor Hayao Miyazaki . O desenvolvimento se dá por meio do diretor e de sua relação com a decolonialidade na área em que trabalha. Partimos do ponto de pensar o cinema não enquanto pura forma de entretenimento ou a partir de sua formação histórica. A história aqui desempenhará o papel de auxiliar o entendimento do objetivo principal enquanto o ato de entreter causado pelos filmes terá, junto ao seu significado usual, a característica de que alguma mensagem foi passada a quem assiste.
Iniciando da linha de que é através do homem que a sociedade se torna em ser, o pensamento decolonial escrito por Fanon é dito como aquele que visa desfazer as representações coloniais do eu e do outro. Como ele mesmo escreve: “ Muitos pretos não se reconhecerão nas linhas que se seguem. Muitos brancos, igualmente. ” (FANON, 2008, pp. 29). Caminhar junto ao pensamento decolonial é desfazer de uma das lentes mais profundas se constrói no interior de quem se é, causa a dor de enxergar que o plano social e individual se orienta também através de representações rasas constituídas e disseminadas pela classe dominante de diversas instituições da sociedade.
Ao nos voltarmos para Miyazaki, personagens femininas com personalidades humanizadas e ocupando o papel de protagonistas não é algo novo, nem mesmo a narrativa dessas personagens são parecidas. Kiki, personagem principal do filme “O Serviço de Entregas da Kiki” (1989), tem sua vida contada a partir de um ritual de passagem para bruxas de sua idade. Durante todo o filme, Kiki se vê impelida a entrar na vida adulta e adotar uma visão de mundo mais próxima as dinâmicas do capitalismo. As questões que a perpassam estão mais ligadas as mudanças que estão ocorrendo em seu interior e em seu exterior. Para Kiki, o que entra em jogo não tem a ver com o que, ao nível de senso comum, é relacionado a feminilidade. A menina enfrenta, os desafios de ser imigrante e de estar crescendo, dúvidas acerca da sua identidade passam a ser o foco da narrativa. Já no primeiro filme dentro do Estúdio Ghibli, “Nausicaa do Vale do Vento” (1984), Miyazaki mostra a princesa guerreira Nausicaa como aquela que impedira uma guerra entre duas nações em um planeta devastado pela guerra.
A diversidade de personagens femininas é existente tanto entre as personagens principais quanto as coadjuvantes. Em ambas as posições, mulheres ocupam espaços cinzentos e complexos que as tornam mais próximas de quem assiste, abrindo o leque de possibilidades para que outras meninas se vejam para além do estereótipo de fragilidade e dependência masculina. A empatia criada não se restringe a gênero e nem tem a pretensão de massificar a ideia fixa do que é ser mulher.
Aqui, temos a promoção da quebra de um dos elementos coloniais que incidem sobre o gênero. A formação do imaginário coletivo é também sujeita ao consumo audiovisual. A produção e reprodução dos papeis femininos frágeis influi na auto percepção e na percepção que se tem do outro. Nesse caso, a alteridade através do consumo exerce papel de quebra de papeis patriarcais da sociedade japonesa, apesar de muitas vezes, o consumo carecer de um ato reflexivo. Esse processo de identificação que ocorre entre a personagem na tela e aquele que consume, é bem usado por Miyazaki, já que ele não apenas quebra com a imagem da mulher como também com a imagem da mulher japonesa.
A personagem coadjuvante de “Ponyo: Uma Amizade que Veio do Mar” (2006), Lisa, que é mãe de um dos personagens principais, vive a realidade da dupla jornada de muitas mulheres modernas. A quase total ausência do pai de seu filho, a põe na obrigação cumprir a cansativa jornada de cuidar do menino e de trabalhar em um asilo, o que torna os momentos com o filho escassos, mas bem aproveitados. Mesmo que esse estereótipo não exista apenas no Japão, ainda assim era uma representação que permanecia bastante forte no imaginário japonês durante a segunda guerra mundial, período que influenciou fortemente Miyazaki. Abro um parêntese aqui para relação entre mãe e filho, que acontece de maneira horizontal. Enquanto mãe ela não esconde suas fragilidades e problemas da vida adulta, chora quando sente vontade e é consolada pelo filho.
Outra personagem que também entra em conflito com a representação patriarcal do envelhecimento da mulher é a bruxa Yubaba de “A Viagem de Chihiro” (2001), filme ganhador do Oscar de melhor animação. Yubaba é mãe em uma idade bem avançada, assim como tem o forte caráter de ser uma mulher ambiciosa e centrada no enriquecimento através de sua casa de banho. É fortemente ativa e exerce seu poder sob os funcionários de maneira autoritária. Ao contrário da esperada serenidade e bondade de uma mulher idosa, Yubaba é explosiva e dura, sempre voltada para a satisfação de seus anseios por ganho financeiro. Apesar das características que a enquadrariam facilmente no papel de antagonista megera, quando a bruxa sente seus negócios ameaçados, ela desce da hierarquia criada nos negócios para ajudar e comandar a frente junto aos funcionários.
Nos três exemplos vemos mulheres que estão posicionadas em lugares diferentes dentro do filme e que suas personalidades e físico humanizados. E aqui cito uma parte da grandiosa reflexão de Chimamanda Ngozi Adichi. A autora exemplifica um aspecto interessante que se dá tanto em tempo coloniais quanto atualmente em relação ao consumo. Até hoje, em países colonizados é comum que as prateleiras, virtuais ou não, sejam abarrotadas de leituras e produções audiovisuais que vem de países colonizadores. Aquilo que é produção nacional não é visto, valorizado ou é pouco acessível para camadas populares. Quando nos vemos em algum audiovisual é, por muitas vezes, através dessa quase imperceptível lente colonialista. Se torna mais familiar o estrangeiro colonizador do que aquilo que está em território nacional, esse segundo se tomando até mesmo contornos exótico para o próprio país.
Retornando ao Japão, porem continuando a discussão entre homem e o espaço que ocupa, Miyazaki recorrentemente aborda a relação entre homem e natureza. Outro elemento fundante do diretor é a base Xintoísta que usa para compor a relação que seus personagens estabelecem com a natureza. O homem faz parte do todo e está conectado a ao todo, indo ao contrário da concepção capitalista que vigora hoje, mesmo no Japão, de que o homem ocupa uma posição hierarquizada em relação a natureza. No Xintoísmo, não há uma divisão rígida entre o mundo espiritual e o humano, ambos ocupam o mesmo espaço se trombando e cruzando o mesmo caminho. Essa característica pode ser observada em “Meu Amigo Totoro” (1988), “O Castelo Animado” (2004) e “A Viagem de Chihiro” (2001). Nessas animações, o mundo espiritual e o humano convivem e até trabalham juntos no caso de “O Castelo Animado”.
O diretor retrata a relação com a natureza de mais de uma forma, por exemplo em “Princesa Mononoke” (1999). Em 1997, o diretor retorna à posição de direção para começar “Princesa Mononoke”, que tem como um dos personagens principais Ashitaka, um jovem príncipe amaldiçoado por um espírito da floresta, que deve deixar a vila em que mora. Abro um parêntese aqui para escrever que em nenhum momento o espectador é induzido a um lado enquanto “bonzinho” e “malvado”. Com o desenrolar da narrativa, o menino passa a ocupar o papel de mediador numa guerra entre a cidade de ferro e os deuses da floresta. O conceito para o filme surge do final da década de 1970 quando Miyazaki trabalhou com a ideia de “Bela e a Fera”, todavia, ao começar com os storybords do longa em 1994, não via que a produção fazia sentido junto a sociedade da época.
O longa é marcado pela dicotomia espírito-matéria, princípio ao qual Miyazaki recusa abertamente em suas falas a entrevistas. Sua produção confronta um dos elementos que legitima as ações hostis do homem moderno contra o meio ambiente, a de sobrepor a natureza e usa-la de maneira não pensada. Seu posicionamento não é apenas parte discurso de cunho xintoísta, estando também em consonância com sua visão política. Um exemplo disso, esta em “Nausicaa do Vale do Vento”. Na realidade pós-apocalíptica, mil anos após uma guerra causada pela humanidade, a natureza se tornou mortal para o homem o obrigando a viver em pequenas vilas que guerreiam entre si. O filme que era apenas um alerta para o possível futuro, se tornou como um presságio para os tempos de pandemia. O ar, enquanto elemento vital para a vida humana, passa a ser o maior perigo a se enfrentar, fazendo com que o uso de máscara seja necessário. Nesse cenário, o homem se torna refém em escala global por uma guerra que durou sete dias e foi causada pela sua inconsequência.
A relação homem-natureza existe a muito mais tempo do que pode ser quantificada, podendo ser olhada, por exemplo, pela óptica mística, do uso para sobrevivência, da transformação do meio através do trabalho. Porém, predominantemente, hoje a relação de base capitalista se estabelece através do viés econômico e do uso baseado em consumo de grande escala. Dentro dessa concepção, a natureza e o homem não somente são separados e até postos em oposição, como também a primeira se torna subjugada ao segundo. Todavia, se faz necessário dizer que limitar essa discussão apenas ao capitalismo é ofuscar parte de sua história, história que se dá junto a colonização. A invasão e dominação europeia a outros continentes não se dá somente sob seres humanos que habitavam essas terras, mas também sob seus territórios e recursos ali encontrados. A apropriação tanto de mão-de-obra escrava quanto dos recursos, enriquece a Europa e, junto a outros elementos, a torna em lugar propício para o desenvolvimento do capitalismo.
Portanto, ao questionar o capitalismo, questiona-se também seu passado colonial. Crítica que não falta na filmografia de Miyazaki e como já foi exemplificado durante o corpo do ensaio. O diretor põe sua pessoalidade no filme através de memórias afetivas e também de seus posicionamentos. Mesmo que efetivamente não trabalhe na área de sua primeira formação em Ciências Políticas e Economia pela Universidade Gakushuin, Miyazaki ainda usa da lente de senso crítico construída ali dentro e transforma conceitos acadêmicos em traços de seus filmes. Apesar de não usar abertamente a decolonidade naquilo de faz, o diretor nos mostra com delicadeza um olhar ao qual minorias reivindicam a tempos que é a humanização.
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