MidiÁsia

O advento da internet permitiu que as informações pudessem transitar de uma ponta a outra do globo instantaneamente, e com isso, as trocas culturais entre os mais diferentes países também floresceram como nunca antes foi visto na história da humanidade. As sociedades são formadas pela convergência de diferentes culturas e identidades, mas a globalização criou uma geração imersa no conhecimento, do como é ou era a vida nos quatro cantos do planeta. 

Um dos maiores reflexos dessa “Nova Ordem da Informação” são as plataformas de streaming de conteúdo midiático como música (Spotify, Deezer, Amazon Music, etc), filmes e outras produções audiovisuais (Netflix, MUBI, Globoplay, Disney+), dentre outras. Passíveis de muitas críticas, essas plataformas abriram espaço para que o conteúdo produzido em países fora dos holofotes tradicionais chegasse ao público geral também. Foi nesse contexto que o mundo viu países asiáticos emergirem como “potência midiática”, fazendo frente a mercados há muito tempo bem estabelecidos. 

De 2018 a 2022, o Spotify registrou um aumento de 230% nos streams de Kpop, o pop sul-coreano, no mundo todo. Também chama atenção o crescimento de serviços de streaming focados em conteúdo asiático, como Rakuten Viki, globalmente. A predominância do conteúdo asiático já se tornou o “novo normal” após a pandemia de COVID-19, quando muitas pessoas recorreram ao entretenimento e às artes para conseguir superar aquele momento pelo qual a humanidade passava.

No final de 2020, a música “Mayonaka no Door ~ Stay with Me” da cantora japonesa Miki Matsubara (1959-2004) chegou ao topo das paradas de hits virais, aquelas músicas chicletes que num dado momento todo mundo ao seu redor ouviu, do Spotify nos EUA. Não era qualquer música. Era uma música lançada quarenta anos antes de ser esse sucesso estrondoso. Três anos depois de liderar as paradas de sucessos americanas, a mesma música ganhou um videoclipe no YouTube, dirigido por uma dupla de diretoras brasileiras, Lina e Maira Fridman. “ A música da Miki-san, em específico Mayonaka no Door, é muito atemporal. Mesmo do outro lado do mundo, no Brasil, ela teve um grande impacto e isso mostra como a música dela não tem fronteiras. Estamos realmente emocionadas em compartilhar esse tributo à Miki Matsubara-san com o mundo!”, foi o que disseram as diretoras sobre o projeto, uma homenagem a Matsubara, que completaria 64 anos em 2023.

Videoclipe especial de “Mayonaka no Door ~Stay with Me” dirigido pelas brasileiras Lina e Maira Fridman (Fridman Sisters).

O videoclipe foi na verdade um acaso. As brasileiras estavam em Tóquio para uma outra filmagem e contam que, em meio a um izakaya com o fotógrafo Pierre de Kerchove, que também estava envolvido no projeto, tiveram a ideia de gravar um tributo a Miki Matsubara com a música. Envoltas na nostalgia que a ideia trazia, elas foram surpreendidas com o cancelamento inesperado da campanha que tinham de gravar no Japão. Uma vez que estavam lá, não tinha porque voltarem ao Brasil sem nada gravado. Foi então que decidiram colocar sua ideia no papel e apresentaram o projeto a equipe no país. “A verdade é que não sabíamos que seria um clipe oficial até receber a aprovação da equipe da Miki Matsubara-san, que simplesmente amou tudo. Assim como eles respeitaram muito nosso trabalho, também tivemos todo o cuidado em fazer um clipe que respeitasse a cultura e o público japonês. E que também dialogasse com qualquer pessoal do mundo, não importasse de onde fosse. É muito gratificante e especial juntar tudo o que amamos e colocar num clipe!  Sem dúvida é um dos projetos mais importantes e especiais que já fizemos”, disseram as diretoras. 

“Mayonaka no Door ~ Stay with Me” é considerada uma das músicas mais representativas do gênero City Pop. É difícil definir o que é o City Pop em poucas palavras. Geralmente, a descrição usada é “um gênero musical japonês que fez muito sucesso entre anos 1970 e 1980 e que traz uma atmosfera urbana e moderna para as músicas”. Mas essa é uma definição genérica. Como ressalta o professor da Faculdade de Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo Josieldo Pereira: “Em análises atuais percebemos que o que chamamos de City Pop da época era uma grande mistura de tudo, inclusive fusão com ritmos latinos. Por isso entendemos que esse gênero é criado retroativamente a partir dos virais e dos conceitos visuais estéticos que eles engendram. O City Pop do período é na verdade tão misturado a tudo que poderíamos falar que ele é amorfo, sem marcas de uma identidade japonesa. É possível facilmente perceber a troca dos códigos linguísticos: japonês e inglês.”

A própria música “Mayonaka no Door” ilustra isso, já que, por mais que a maior parte da letra tenha sido escrita em japonês, seus primeiros versos são em inglês: to you, yes, my love to you. “Mayonaka no Door” foi a música de estreia de Miki Matsubara lançada em 1979, quando a cantora tinha apenas 19 anos. A composição de Tetsuji Hayashi se vale da nostalgia para retratar um sentimento quase universal: a saudade. A necessidade de que a pessoa amada fique com você. A melodia que mistura jazz e R&B com uma interpretação dramática de Miki ajudam a compor a aura nostálgica que a música passa.

Capa do álbum de maiores sucessos (1979-1985) da cantora Miki Matsubara

O City Pop surgiu em um Japão que crescia vertiginosamente nos anos 1980 e não obstante representaria esse período de estabilidade econômica considerado milagroso. “A música era sofisticada, como se feita para passeios, e precisamos sempre prestar atenção ao termo City Pop, que existiu de fato, ou seja, o pop da cidade. Um som que é urbano. Um som de uma geração menos interessada em política, e que andava em carros de luxo observando as luzes da cidade poderia querer ouvir”, explica o professor Josieldo da USP. 

Se nos anos 1980, o City Pop foi impulsionado pelos disck jockeys e toca-discos portáteis, chegando aos mais jovens e ostentando uma vida nada bucólica como se não houvesse amanhã, nos dias de hoje, o gênero volta às paradas de sucesso também graças a uma geração mais jovem, e a tecnologia de nossa época. “De uns bons anos pra cá a cultura pop japonesa como um todo tem ganhado cada vez mais público. Do nosso ponto de vista ‘amantes do Japão desde os anos 90’ é muito louco ver como mudou. Agora tudo é muito mais acessível e a cultura pop japonesa (e asiática) tá muito na moda. Se antes tínhamos que baixar coletâneas em sites duvidosos para encontrar músicas novas, hoje é só você ser impactado por uma onda de reels no Instagram, TikTok, ou receber uma recomendação do Spotify”, comentam as Fridman Sisters, que dirigiram o videoclipe em homenagem a Miki Matsubara.

A fantasia de um Japão luxuoso, onde a vida noturna é quase um sonho, atraiu o público internacional para o City Pop novamente, tudo claro graças a internet. “O que foi criado recentemente é uma onda motivada pela adoção de uma estética. Que é ficcionalizada. O City Pop sempre teve praias em sua bagagem visual e a relação com o idílico e o algo que deve ser aproveitado, mas agora são pessoas que usam as músicas para atividades arbitrárias ou usam-nas para criar mais estéticas: adotam tons pastéis, fazem o uso da música em um pôr-do-sol, o uso da música utilizando imagens aleatórias de personagens de anime andando pela cidade (particularmente, estas fazem muito sucesso)”, pontua Josieldo. 

Capa do Single “Plastic Love” (1984) da cantora Mariya Takeuchi

O sucesso repentino de “Mayonaka no Door” nas parada do Spotify nos EUA se deu após a música começar a ser usada por inúmeros usuários do TikTok, sobretudo nipônicos, ao longo de 2020. No mesmo período, um vídeo cover da música, interpretado pela indonésia Rainych Ran, viralizou no YouTube, impulsionando os streamings de “Mayonaka no Door” em diversas plataformas pelo mundo. Um pouco antes da canção de Miki Matsubara ressurgir na cena musical, outra música, também considerada um das mais representativas do City Pop japonês, chamou a atenção do ocidente.

Em 2017, uma versão estendida da música “Plastic Love”, lançada em 1984 pela cantora Mariya Takeuchi, foi upada no YouTube e começou a ser recomendada frequentemente pelo algoritmo da plataforma. O vídeo, que havia sido disponibilizado por um fã, chegou a atingir mais de 24 milhões de visualizações na plataforma por volta de 2019, a ponto de a música ter sido considerada quase “inescapável” aos ouvidos do usuário do YouTube. Em 2021, “Plastic Love” também ganhou um videoclipe especial, com cenas ambientadas em Tóquio à noite, ambientação muito associada ao gênero.

Videoclipe especial de “Plastic Love” da cantora Mariya Takeuchi

“Plastic Love” acabou se tornando a “porta de entrada” de vários jovens, sobretudo ocidentais para o City Pop atualmente. Assim, muitos acabam conhecendo outros artistas da época como Tatsuro Yamashita, marido de Mariya, Junko Ohashi, Anri, Eiichi Ohtaki, e outros nomes, que soam tão glamourosos quanto o som que suas músicas pretendem passar. Mas vale lembrar que esse “ressurgimento” é também fruto do “descobrimento” do City Pop pelo ocidente, uma vez que as canções e a estética associada ao gênero fazem parte na verdade de um grupo específico de japoneses, e isso desde o seu surgimento nos anos 1980. Como pontua o professor Josieldo: “Acho interessante uma frase de um produtor japonês, Kitazawa Yosuke, que dizia que em seu círculo de amigos, que esse estilo [o City Pop] era conhecido como “brega” ou “shitty pop” (literalmente pop de merda, um trocadilho com a grafia japonesa Shitipoppu シティポップ – city pop). Foi muitas vezes nichado, relegado a poucos espaços em revistas musicais especializadas. Mas há, sim, exemplos de bastante proeminência”.

Sem dúvidas o que vemos nos dias de hoje é que o City Pop se tornou o cânone de um Japão que já não existe mais. Contudo, é essa imagem idealizada que atrai o público e influencia artistas ao redor do mundo, como recente lançamento do cantor estadunidense The Weeknd, que usou o sample da música “Midnight Pretenders” (1983), de Tomoko Ara, em sua canção “Out Time” (2022). Não sabemos qual será o futuro do City Pop, mas com certeza o gênero continuará a fazer parte do imaginário de inúmeras pessoas no mundo inteiro

Categorias: Especial

Pedro Igor Lima

Graduando em Jornalismo apaixonado por viagens e cultura. Faz parte do MidiÁsia como redator e colaborador, além de integrar o grupo de pesquisa Oficina Invisível de Investigação em Quadrinhos da Universidade Federal do Ceará.

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