Por Mateus Nascimento e Douglas Almeida*
Chegou a hora e a vez de falarmos de videogames, Ásia e as possíveis utilizações desse material para além do ludicidade! Faz muito tempo que o público dos games vem aguardando um título de mundo aberto baseado na Ásia, e as utilizações possíveis destes produtos que estão chegando cada vez se torna mais evidente: não são só jogos, são produtos que armazenam espaços de construção de conhecimento.
Nesta modalidade, o chamado mundo aberto, as decisões do jogo e a forma de desenvolvimento dos personagens é mais livre do que num jogo tradicional com etapas e trajetórias pré-definidas. Estamos falando de jogos que permitem a cada jogador a liberdade de explorar as terras e vivenciá-las do seu jeito e no seu tempo, quase que como entrando na telinha (leia o livro Homo Ludens, de Johan Huizinga, para compreender o papel do jogo e dos seus elementos formadores na sociedade, ok?).
Soma-se a isso o fato de que essas terras e história são as de países asiáticos tradicionalmente envoltos em mistérios, lendas e narrativas e personalidades icônicas – o que torna a diversão ainda mais emocionante. No que diz respeito ao Japão, a espera de alguns finalmente acabou: com vocês, o recém lançado Ghost of Tsushima!
Na verdade, os desenvolvedores da Sucker Punch Productions (1997 – atualmente) reinauguraram esta que já era uma área consolidada na indústria dos games de console. Alguns games já trouxeram cultura japonesa em suas narrativas. Exemplos não faltam: a série Yakuza (2005-2020), Ōkami (2006), Way of the Samurai (2002), Samurai Warriors (a “eterna franquia” iniciada em 2004 constantemente atualizada), o especial componente da franquia Total War, Total War Shogun e suas atualizações (2000), para citarmos alguns dos mais conhecidos mundialmente. Contudo, o destaque a Ghost of Tsushima, lançado em 17 de julho de 2020, reside na sua tecnologia de simulação histórica, precisão dos elementos dessa simulação e no design em modo aberto (modo de mundo aberto, ou open world).
Um dos maiores espaços de exibição de tecnologia de jogos, a Paris Game Week, apresentou o jogo em 2017, empolgando todo um público com a proposta do enredo: o jogador assume o controle de um samurai, Jin Sakai, participante de um dos eventos mais controversos da história do Japão: as invasões mongólicas de 1274. O jogo se passa em Tsushima, a ilha do arquipélago japonês mais próxima da península coreana, de onde os navios da primeira invasão teriam partido.
Vemos a preparação dos samurais locais que deverão fazer frente aos primeiros movimentos do exército mongol. A partir dali, assumimos o papel do protagonista Jin Sakai, samurai cabeça de seu clã e servo de seu tio Lorde Shimura, que terá como objetivo sobreviver ao ataque e resistir à invasão. Um dos pontos altos do enredo jogo é a construção do personagem principal, um samurai submetido a um código de conduta guerreiro, extremamente rígido, que, aos poucos, passa a questionar seus próprios princípios a fim de derrotar a horda inimiga que usa de artifícios de guerra pouco convencionais e menos honrados do que normalmente se imagina.
A inserção desse personagem samurai, suas dúvidas e a forma de sua evolução remetem as obras do cinema japonês especializado nesse grupo social histórico. Especialmente famoso é o diretor Akira Kurosawa (1910-1998), homenageado no jogo através de um modo de câmera que busca repetir os traços nostálgicos das suas películas cinematográficas: em preto e branco, aos moldes do cinema tradicional.
Os duelos entre samurais, o questionamento da honra, a busca pela benção sagrada dos santuários e o constante embate contra as hordas mongóis proporcionam uma narrativa e aventuras que estruturam a expectativa de 50-60 horas de gameplay, considerado o tempo mínimo para realizar esta história.
Além disso, a ambientação, com detalhes e repleto de referências a diversos lugares reais da história japonesa, chama a atenção pelo seu poder de convencimento. Figuras históricas reais aparecem na narrativa, com trechos que contam fatos dessa história da cultura do Japão para o jogador, o qual, supomos, pode ser influenciado por elas, mesmo sabendo se tratar de um jogo.
Mais ainda: no imaginário coletivo, a cultura dos mongóis e da Mongólia é permeada de orientalismos e enquadramentos pejorativos. Por um lado, Gêngis Khan (1162-1227), o grande líder mongol, é representado como bárbaro, ameaçador e perigo em potencial para a cristandade medieval, como um outro não exemplar que precisa ser combatido por não fazer parte do mundo cristão. Contudo, na outra face dessa relação, basta considerar que o termo mongol durante anos foi usado como chacota, uma ofensa para se referir à inteligência de alguém ou à sua deficiência psiquiátrica. Fica aqui o alerta e o manifesto em prol do abandono do uso dessa palavra.
Nesse sentido, é o jogo – de novo: é o jogo – que vai nos apresentar esses excluídos das narrativas históricas, apagados no momento em que o “Grande Khan” é usado como sua representação no ensino de história mundial. Longe de ser representados como meros bárbaros sádicos, os mongóis nos são apresentados como poderosos, civilizados, com práticas políticas e diplomáticas em meio à herança de tradições.
Diversos itens colecionáveis pelo cenário do game nos permitem conhecer mais pormenorizado essa cultura mongólica, através de objetos tradicionais ou mesmo vasos romanos, máscaras de deidades de terras distantes ou porcelana chinesa de outras dinastias conquistadas, os quais são acrescidos de comentários ou explicações em cards inseridos com menção, inclusive, a livros e fontes consultáveis.
No exato momento em que essa busca extra (consulta externa ao jogo) se materializar, não teríamos aí outra utilização do jogo em tempos de mediação midiática tão acentuada? Eis uma boa questão para pesquisas, pois as representações e a forma como as interpretamos e as mobilizamos são excelentes objetos de pesquisa dos estudos de mídia.
Nas entrelinhas do jogar, a visão sobre o passado e cultura mongólica nos Games nunca teve tanto destaque ou foi tão bem feita quanto em Ghost of Tsushima, que, portanto, nos apresenta o Japão feudal na visão de um samurai ambientado e, ao mesmo tempo, o intenso jogo das relações entre Japão e continente pelo elemento histórico da guerra. Isso conduz o jogador por uma série de representações dignas de estudos futuros.
Esperamos que aproveitem a dica e divirtam-se!
*Douglas Almeida é Historiador formado pela Universidade Federal Fluminense, com especialização em História Militar pela UNIRIO, ambas com pesquisas acerca da História dos Samurais. Também atua como 2º Coordenador do Grupo de Estudos Japoneses da UFF (GEHJA-UFF), Coordenador Geral da Academia Nipo Brasileira de Estudos de História & Cultura Japonesa do Instituto Cultural Brasil-Japão (ANBEHCJA-ICBJ), membro pesquisador do Grupo de Estudos de Diplomacia Multidimensional do Oriente (GEDIMO-UFF), do Núcleo de Estudos Japoneses da Federal de Santa Catarina (NEJAP-UFSC), do Grupo de Estudos de História Militar (GEHM-CEIA/UFF) e pesquisador colaborador do Centro de Estudos Asiáticos (CEA-UFF) e MidiÁsia-UFF.
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