MidiÁsia

Inicialmente, gostaria de sugerir aqui que, quando memória e discurso se fundem ao engajamento, nasce o testemunho – que, no nosso caso, é esse ato (estilo de vida) de contar para que não se repita. Primo Levi (1919-1987) caminhou nessa direção, narrando a sua experiência em Auschwitz. Há inúmeras versões do diário de Anne Frank (1929-1945), e até alguns teóricos, atualmente conhecidos, que escreveram ou na cadeia ou em fuga do terror nazista (Erwin Panofsky, produzindo em história da arte, por exemplo). Também há variados livros que tratam do nazismo e seu funcionamento.

O expansionismo, o holocausto, a violência política, as batalhas… Tudo isso já é de conhecimento do público amplo. Poderíamos ainda lembrar dos extermínios, da loucura nazista, dos campos de concentração, da inauguração dos fronts asiáticos, dos crimes de guerra cometidos por tantos dos países envolvidos. Muitos dados traumáticos para uma humanidade que conhecia no séc. XX um dos maiores desenvolvimentos técnico-científicos, utilizados nesse evento de maneira traumática.

No entanto, o que poderíamos utilizar cientificamente para divergir desse quadro mais conhecido? Primeiramente, é necessário assumir que a pesquisa é uma militância, na qual os pesquisadores assumem, como objetivo, influenciar o meio em que vivem e a humanidade com suas comprovações e explicações. Isso se chama engajamento. Em segundo lugar, com relação ao tema específico da Segunda Guerra Mundial, é possível encontrar nessas memórias e discursos ricos  dados e conceitos possivelmente analisáveis para uma crítica qualificada. Às vezes podem ser encontradas direções inéditas que dão novo fôlego à pesquisa e à reflexão.

Refiro-me à trajetória dos sobreviventes de Hiroshima após a bomba. Sim, homens e mulheres que testemunharam o horror daquele dia – 6 de agosto – e, apesar de todo o sentimento que poderia brotar, decidiram viver militando pela paz, alertando ao mundo sobre os horrores da guerra em tempos tão conturbados.

Junko Watanabe, 76 anos. Takashi Morita, 96 anos. Kunihiko Bonkohara, 78 anos. Créditos: divulgação do projeto “Sobreviventes pela Paz”.

Eis, os três são sobreviventes de Hiroshima. Seus testemunhos daquele contexto se encontram no livro organizado por Cristiane Izumi e Paulo Endo, os quais, tendo a psicologia como campo de especialização, organizaram um evento sobre Hiroshima e Nagasaki no Instituto de Psicologia da USP em setembro de 2012. Desse encontro, nasceu o livro Hiroshima e Nagasaki: testemunho, inscrição e memória das catástrofes. Takashi Morita, por sua vez, tem seu testemunho publicado em livro à parte, A última mensagem de Hiroshima: o que vi e como sobrevivi à bomba atômica, lançado em 2017.

Capa do livro Hiroshima e Nagasaki. Créditos: foto do autor.

O primeiro livro conta com artigos de variados autores, com destaque para os textos de Ecléa Bosi e Sedi Hirano, que apresentam um rico panorama dos fatos e uma análise tanto da guerra quanto das implicações dela, partindo da metodologia da psicologia social para compreender essa inscrição da memória individual e coletiva das catástrofes. O conceito remete à psicanálise, aquele exercício de interpretação dos simbolismos e suas aparições subjetivas, que afetam o social e a socialização. Não possui só artigos, também está recheado com os testemunhos transcritos dos idosos e alguns de seus desenhos, criados como um escape ao que viam – ricos materiais para um estudo de arte que seria inédito: o testemunho em desenho.

Quanto ao livro dedicado ao testemunho do senhor Morita, parece-nos que Hiroshima se faz como uma cidade completamente incendiada, com pessoas carbonizadas, feridas em pústulas vivas, e os cadáveres quase informes, todos protestando silenciosamente contra a guerra. Ficamos sabendo de todo o dia 6, desde antes do bombardeio até as medidas adotadas pelo governo japonês, que se encontrava prostrado.

Vemos isso através de suas palavras vívidas que se insurgem contra a guerra. De fato, os eventos que acontecem entre 1939 e 1945 mexem com o mundo todo, e alguns dos acontecimentos ainda encontram espaço na memória popular. Trata-se de um dos momentos mais importantes da história da humanidade: a Segunda Guerra Mundial.

Talvez, voltar os ouvidos para a paz e para os seus defensores seja um caminho para refletirmos e mudarmos a direção em tempos pandêmicos, em que a humanidade encontra-se, mais uma vez, contestada, e os poderosos roubam insumos entre si. Pela vida, pela paz: Hiroshima nunca mais.

Rogério Nagai, diretor e idealizador do “Sobreviventes pela paz” fala sobre o projeto exclusivamente para o MidiÁsia.

Ficha técnica:  Título: Hiroshima e Nagasaki: testemunho, inscrição e memória das catástrofes. Organizadores: Cristina Izumi e Paulo Endo. Editora: Benjamin Editorial. Ano: 2015.

Ficha técnica:  Título: A última mensagem de Hiroshima: o que vi e como sobrevivi à bomba atômica. Autor: Takashi Morita. Editora: Universo dos livros. Ano: 2017.


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